quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Mais um pouco de Pessoa

O mundo é de quem não sente. A condição essencial para ser um homem prático é ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção _ a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção, é por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atraverssarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que nos não figuremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte _ ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre o que passa ou o que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças de jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve como fuga para a sensibilidade que a acção teve que esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário da acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. “tenho pena do tipo”, disse-me ele. “Vai ficar na miséria.” Depois, acendendo o charuto, acrescentou: “Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim” _entendendo-se qualquer esmola _ “eu não esqueço que lhe devo um bom negócio em umas dezenas de contos.”
O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo, pode de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.
Como o patrão Vasques são todos os homens de acção_chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A trajetória de um Louco


Para aqueles que acessaram o link do JARDIM DO TARÔ de Niki deSaint Phalle, transcrevo um texto sobre o arcano que incia (em algumas versões termina, em outras nem existe) o jogo. É um texto sobre a versão /visão mitológica, o tarô que inspirou Niki é o de Marselha.

O LOUCO
O jovem que inicia a jornada sob a identidade de Dioniso, o deus misterioso chamado de O que Nasceu Duas Vezes. Dioniso era filho de Zeus, rei dos deuses, e de Semele, a princesa de Tebas, porém mortal. A esposa imortal de Zeus, Hera, enfurecida com a infidelidade do marido, disfarçou-se de ama-seca e foi ter com Semele, ainda grávida, e persuadiu-a a pedir que o marido se mostrasse em todo o seu esplendor e glória divina. Zeus que prometera a Semele jamais negar-lhe coisa alguma, assim o fez para satisfazê-la, e Semele, não suportando a visão do deus circundado de clarões, tombou fulminada. Zeus apressou-se então a retirar a criança que ela gerava e ordenou que Hermes, o mensageiro dos deuses, a costurasse em sua própria coxa. Assim, terminada a gestação, Dioniso nasceu vivo e perfeito. Contudo, Hera, não satisfeita, continuou a perseguir aquela criança de chifres e ordenou aos Titãs, deuses terrenos, que matassem o menino, fazendo-o em pedaços. Mas novamente Zeus interferiu e conseguiu resgatar o coração da criança, que ainda batia. Colocou-o para cozinhar junto com sementes de romã, transformando tudo numa poção mágica, a qual deu de beber a Perséfone, que acabara de ser raptada por Hades, deus das trevas e da Escuridão, e que se tornaria sua esposa. Perséfone engravidou, e novamente deu à luz a Dioniso, o renascido das trevas. Por esse motivo era chamado Dioniso-laco, O que nasceu Duas Vezes, deus da Luz e do Êxtase. Convocado por seu pai Zeus para viver na terra junto com os homens e compartilhar com eles as alegrias e sofrimento dos mortais, Dioniso foi atingido pela loucura de Hera, indo perambular pelo mundo ao lado dos sátiros selvagens, dos loucos e dos animais. Deu à humanidade o vinho e suas bênçãos, e concedeu a redenção espiritual a todos os que decidiam renunciar à riqueza e ao poder material. Por fim, seu pai Zeus, permitiu retornar ao Olimpo.
GREENE, Liz; SHARMAN-BURQUE, Juliet. O Tarô Mitológico

domingo, 25 de julho de 2010

Niki de Saint Phalle


Niki de Saint Phalle nos apresenta uma série de obras que funcionam como uma declaração universal de liberdade do indivíduo, sejam mulheres ou homens, seres humanos libertos em seu universo criativo e em expansão.


Sua arte, proveniente de memórias da infância, de seus sentimentos femininos mais profundos e secretos, de um primitivismo solto e desvinculado dos padrões habitualmente codificados e aceitos, vem pontilhado de humor e de cores explosivas.

Em sua linguagem que está quase próxima ao infantil nos revela um requinte que a liga a rebeldia dos dadaístas, à mutação vertiginosa dos tempos e às metamorfoses misteriosas do ser interior, cofre inconsciente de desejos e temores, presentes em cada indivíduo.

São surpreendentes seus personagens, inusitados nos materiais utilizados (cacos, sucata, espelhos, plásticos e resinas), expandidos nos formatos e na cor (muitas vezes metálicas e luminosas), nas citações a Gaudí e ao 'Facteur' Cheval, espantosos artistas únicos e destituídos de discípulos, que impressionaram e estimularam Niki de Saint Phalle, ela igualmente artista singular.

É dessa fonte que resulta o belo Jardim dos Tarôs, recentemente concluído e construído inteiramente por ela na Toscana italiana, onde incrustrou suas imensas esculturas-personagens que também são habitações, integrando-as à natureza da região.

Existem muitos temas sobre os quais a artista espalha sua criatividade e que estão presentes aqui : os Tiros, os Altares, as Noivas, as Nanás (moças formosas e alegres - apoteoses de mulheres, idealizadas em imagens bem-humoradas, resplandescentes de liberdade e que tornaram Niki de Saint Phalle reconhecida internacionalmente), os Arcanos Maiores e as esculturas monumentais.

A Pinacoteca do Estado possui em seu acervo uma obra importante de Niki de Saint Phalle, doada pela própria artista.

Link para conhecer o jardim do Tarô

www.nikidesaintphalle.com/

Um pouco de Fernando Pessoa

Este texto trago para refletir com os colegas do curso de especialização em Arte e Educação. Meu foco de reflexão foram estudos sociólogicos e pouco refleti sobre o fazer artístico.


A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Tudo quanto é abstracto é difícil de compreender, porque é dificil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstracções que formei se concretizarão. Suponha-se que por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter o que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angustia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles, sem o que não há comunicação nem há nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direito nem deveres, de ser livre por não saber pensar e nem sentir_ e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exactamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte _ uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirigi à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria intenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; outra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos, e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.
Livor do Desassossego _ p. 255, 256 e 257.

A arte e a liberdade

A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, príncipe da Dinamarca, não sentimos os nossos _ vis porque são nossos e vis porque são vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes, são formas elementares da arte, ou, antes de produzir o mesmo efeito dela. Mas amor, sono e drogas tem cada um a sua desilusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e, quando se dormiu, não se viveu. As drogas pagam-se com a ruína daquele mesmo físico que serviram de estimular. Mas na arte não há desilusão porque a ilusão foi admitida desde o princípio. Da arte não há despertar, porque nela não dormimos, embora sonhássemos. Na arte não há tributo ou multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela oferece, como em certo modo não é nosso, não temos nós que pagá-lo ou que arrepender-nos dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja nosso _ o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o poente, o poema, o universo objectivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa sua essência.
PESSOA, Fernando _ O livro do Desassossego